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terça-feira, 24 de novembro de 2015

A USUCAPIÃO COLETIVA SOB A PERSPECTIVA DA VALORAÇÃO SOCIAL DA POSSE-TRABALHO

A USUCAPIÃO COLETIVA SOB A PERSPECTIVA DA VALORAÇÃO SOCIAL DA POSSE-TRABALHO
  
Uili José Santana dos Santos


RESUMO

A questão tratada no presente texto envolve um inegável senso crítico do Direito de Propriedade a partir dos novos instrumentos jurídicos – usucapião coletiva e desapropriação judicial privada – presentes, respectivamente, no Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/01) e no novo Diploma Civil. Tais instrumentos são aqui discutidos sob a ótica do instituto denominado por Miguel Reale de posse-trabalho.


PALAVRAS-CHAVE: Usucapião coletiva. Desapropriação judicial privada. Posse-Trabalho.


INTRODUÇÃO

A questão em torno da aplicabilidade da função social da propriedade vem sendo discutida com maior veemência a partir da promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, visto que a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social e amparado pelo princípio da função social da propriedade (Art. 170, III CF).

Dessarte, no entendimento de Sonia Rabello (in: FERNANDES & AFONSIN, 2009, p. 215) o princípio da justiça social se desdobra em dois outros princípios, quais sejam “no princípio da justa distribuição dos benefícios e dos ônus sociais, e no princípio que veda o enriquecimento sem causa”, e assim, infere a autora que estes últimos estão materializados, hoje, no Estatuto da Cidade (Lei 10.257, de 10 de julho de 2001) e no novo Código Civil. Outrossim, o jurista Miguel Reale nos lega um novo instituto denominado, por ele mesmo, de Posse-Trabalho (expressão utilizada, pela primeira vez, em 1943 em parecer sobre decreto-lei do Estado de São Paulo), repercutindo seus efeitos, sobretudo, no direito fundamental à propriedade e, igualmente, no direito social à moradia.

1. ETIOLOGIA DO DIREITO DE PROPRIEDADE

O instituto do direito de propriedade é tão antigo quanto à existência do homem. Pois, se considerarmos que a sociedade passou por estágios diferenciados de desenvolvimento humano, repercutindo nas esferas sociológicas, antropológicas, e também, jurídicas, da mesma forma, se constata que os institutos “que tem natureza social que antecede a jurídica” (GUSMÃO, 2007, p. 7) evoluíram, mormente, em relação aos direitos naturais inerentes a todos os seres humanos.

Desta forma, a sociedade transmudou-se de um estágio natural – em que predominava a autotutela (a lei dos mais fortes) – para um uma sociedade política, onde a convivência humana necessitou de uma espécie de pacto ou contrato social (ROUSSEAU, 2007), no qual os seres humanos delegaram a sua vontade a um ente abstrato representando a vontade geral: o Estado.

Apesar disso, a história demonstra que no início de Roma não havia sistematização do direito à propriedade, sendo este considerado absoluto, inexistindo deveras restrições ao poder de gozar, reaver, usar e dispor da coisa.

Na Idade Média, os senhores feudais que eram os proprietários das terras, muito embora cedessem aos seus vassalos a posse destas, bem como, proteção e abrigo, exigiam como contraprestação o cultivo e a mantença dos suseranos.

Com a Revolução Francesa, na conjuntura da propagação das ideias iluministas, o direito a propriedade se consolidou como consectário do direito a liberdade em seu sentido pleno e formal, se consagrando como direito de primeira dimensão. Todavia, a realidade tornou imperioso se buscar uma igualdade material e não apenas formal, uma vez que esta existia apenas no plano teórico e para as classes dominantes.

Posto isso, é que surge a necessidade de se fornecer função social à propriedade, isto é, dar finalidade a mesma em prol dos interesses sociais, ao bem comum.

2. CONCEITO DE POSSE-TRABALHO

O novel diploma civilista brasileiro modernizou os institutos do direito material, embora muitos conceitos já constassem no Direito Comparado, a exemplo da boa-fé objetiva bastante discutida pelos juristas europeus.

Desta feita, na doutrina pátria pudemos contar com novidades no Estatuto da Cidade (importante inovação legislativa trazida pela Lei 10.257, de 10 de julho de 2001) e, também, no atual Código Civil. No primeiro instrumento jurídico, o legislador infraconstitucional dispôs em seu artigo 2º que “A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana” e mais adiante em seu artigo 10 apresenta instituto jurídico novo: A usucapião especial urbana coletiva, ipsis litteris,

As áreas urbanas com mais de duzentos e cinquenta metros quadrados, ocupadas por população de baixa renda para sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, são susceptíveis de serem usucapidas coletivamente, desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural.
(sublinhou-se)
        
Dentro da mesma ideia, o Código Civil brasileiro apresenta pela primeira vez a função social do contrato prevista no artigo 421 “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”, e também, o instituto da desapropriação judicial privada vislumbrado nos §§ 4º e 5º do art. 1.228[1], ipsis litteris

§ 4o O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante.
§ 5o No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores.

Desta forma, observa-se que todos os institutos supracitados estão balizados na função social da posse, na boa fé e no novo conceito de posse caracterizado como posse-trabalho. Frise-se, este último atribuído a sua autoria ao jusfilósofo Miguel Reale (apud NERY JR e NERY, 2005), sendo consequência de sua marcante influência na elaboração do anteprojeto do atual diploma privado.

Nas palavras de Reale (idem) esta posse é caracterizada pela realização no imóvel de obras e serviços de interesse social e econômico relevantes, v.g. a destinação para a moradia. Em vista disso, a posse-trabalho constitui um conceito aberto e indeterminado a ser preenchido pelo julgador em cada caso.

À vista do exposto, é notória a utilização da posse-trabalho como fundamento, não só, para a desapropriação judicial privada prevista nos parágrafos acima, como também, para usucapião especial urbana coletiva prevista no Estatuto da Cidade.

À propósito, necessário se faz uma comparação aos dois institutos apontando-se as diferenças:

a) Enquanto na usucapião coletiva os ocupantes devem ser de baixa renda, na desapropriação judicial privada não há essa necessidade;
b)    Na usucapião coletiva a área deve ter, no mínimo, 250 m2, não se exigindo o mesmo da desapropriação judicial privada;
c) Enquanto a usucapião coletiva apenas se aplica aos imóveis urbanos, na desapropriação judicial privada a sua aplicação se dá tanto aos imóveis urbanos quanto aos rurais; 
d)  Na desapropriação judicial privada há direito a uma indenização, o que não se exige para configuração da usucapião coletiva.

Em verdade, a aquisição da propriedade através da posse-trabalho pode ter aplicabilidade em diversas situações, desde a usucapião especial ou ordinária, ou mesmo, nesta nova espécie de aquisição a partir da desapropriação judicial privada, prestigiando, em qualquer caso, a funcionalização da propriedade, na qual se vislumbra uma finalidade em prol da coletividade, lastreada no Princípio da Socialidade um dos baluartes norteadores do novo Código Civil em contraposição à ideologia individualista e patrimonialista do sistema de 1916.

2.1 O CASO DA FAVELA PULLMAN

Em âmbito forense existe um interessantíssimo julgado, que repercutiu no colendo Superior Tribunal de Justiça, onde se evidencia a aplicabilidade do instituto Posse-Trabalho e a possibilidade de aplicação da Usucapião Especial Urbana Coletiva no caso concreto. O fato ocorreu na zona sul da cidade de São Paulo, esta região é conhecida popularmente como favela Pullman, veja-se excerto do julgado inovador:

CIVIL E PROCESSUAL. AÇÃO REIVINDICATÓRIA. TERRENOS DE LOTEAMENTO SITUADOS EM ÁREA FAVELIZADA. PERECIMENTO DO DIREITO DE PROPRIEDADE. ABANDONO. CC, ARTS. 524, 589, 77 E 78. MATÉRIA DE FATO. REEXAME. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA N. 7-STJ.
I. O direito de propriedade assegurado no art. 524 do Código Civil anterior não é absoluto, ocorrendo a sua perda em face do abandono de terrenos de loteamento que não chegou a ser concretamente implantado, e que foi paulatinamente favelizado ao longo do tempo, com a desfiguração das frações e arruamento originariamente previstos, consolidada, no local, uma nova realidade social e urbanística, consubstanciando a hipótese prevista nos arts. 589 c/ 77 e 78, da mesma lei substantiva.
II. “A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial” - Súmula n. 7-STJ.
III.       Recurso especial não conhecido.
(STJ – Recurso Especial 75.659 – SP (1995⁄0049519-8) – 4.ª Turma – Relator Ministro Aldir Passarinho Junior – Recorrente – Aldo Bartholomeu e outros, Recorrido: Odair Pires de Paula e outros – Data: 21.06.2005).

Diante do exposto, no acórdão acima sobressalta-se a valorização da posse-trabalho para preenchimento da função social da propriedade e a consequente aquisição da mesma pelos moradores da sobredita favela. Nesse caso, poderia ter sido aplicado, sem embargos, a usucapião coletiva, porquanto se percebe presente um dos requisitos para configuração deste direito, isto é, o estado de composse ou litisconsórcio dos possuidores que ao longo do tempo ocuparam os terrenos abandonados com a desfiguração das frações originariamente prevista para cada possuidor. Apesar de citados dispositivos do Código Civil de 1916, o julgado acima demonstra factualmente a situação na qual o loteamento abandonado se encontra, ou seja, seus moradores foram ao longo dos anos empregando esforços para construir não somente ruas, vielas, mas principalmente, as suas moradias. Com certeza, encontra razão Rudolf Ihering (2003, p.30) em sua obra A luta pelo direito, ao expor que “[...] a energia do amor com que um povo está preso ao seu direito e o defende, está na medida do trabalho e dos esforços.”. Há, nesse ponto, perfeito encaixe com a teoria objetivista, também de sua autoria, à medida que para configuração da posse basta que a pessoa disponha fisicamente a coisa.

É importante, ainda, salientar que o Estatuto da Cidade prevê a usucapião coletiva (art. 2º, inciso XIV) como sendo mais um instrumento de aquisição da propriedade através da posse-trabalho por famílias de baixa renda, visto que, na expressão de Carlos Roberto Gonçalves (2010, p. 268),

A inovação visa à regularização de áreas de favelas ou de aglomerados residenciais sem condições de legalização do domínio. Dentre as diretrizes da política urbana que têm por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade...

Portanto, apesar do referido estatuto ser anterior ao novo Código não há de considerá-lo revogado uma vez que se cuida de norma especial, além do mais está em perfeita harmonia com artigo 6º da Constituição Federal que elenca o direito a propriedade como parte integrante do Título II que trata dos Direitos e Garantias fundamentais, consequentemente, é uma norma de ordem pública. Destarte, os professores Flávio Tartuce e José Fernando Simão (2008, p. 146), a fortiori, mencionam que

… a saída seria entender que, principalmente nos casos de famílias de baixa renda – que envolvem a questão da função social da propriedade como valor constitucional – a matéria é de ordem pública, podendo o juiz conhecê-la de ofício, o que representa exceção ao princípio da inércia, como reconhecem os próprios processualistas […].
           
Deste modo, a Súmula 237[2] do egrégio Supremo Tribunal Federal prevê que o usucapião pode ser alegado como matéria de defesa. Logo, data venia, fazendo aplicação analógica a posse-trabalho nos novos institutos da desapropriação judicial privada e da usucapião coletiva, também, poderá ser alegada como matéria de defesa nas ações reivindicatórias, dentre outras.

Sendo assim, verifica-se, como dito linhas atrás, que diversas são as situações ensejadoras da aplicação da posse-trabalho para a concepção do direito de propriedade advindo de uma posse que atenda aos fins sociais exigidos no artigo 5º, inciso XXIII da Lei Maior. Além disso, harmonizando-se com o Princípio da Operabilidade que implica na concessão de maiores poderes hermenêuticos aos magistrados, prestigiando a normatização por cláusulas gerais a serem colmatadas no caso concreto, segundo prelecionam os autores e magistrados Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona (2008, p.52).

Outra vez, referenciando Ihering em sua obra A luta pelo direito (2003, p. 46), vê-se que:

… O grau de energia com que o sentimento jurídico reage contra uma lesão do direito é a meus olhos uma medida certa da forma com que um indivíduo, uma classe ou um povo compreende, por si e pelo fim especial da sua vida, a importância do direito, tanto do direito em geral, como de uma instituição isolada do direito. (sublinhou-se)

Por conseguinte, a lição deixada pelo autor supracitado finda por consagrar o brocardo jurídico que diz: “O direito não socorre aos que dormem”. Igualmente, necessário se faz dar destinação/finalidade a posse e, por corolário, a propriedade, beneficiando não apenas o possuidor/proprietário, mas toda a coletividade.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do que foi exposto, à luz da lei, da doutrina e da jurisprudência, pretendeu-se elencar e provocar reflexões acerca dos institutos: desapropriação judicial privada, usucapião coletiva e posse-trabalho todos imbuídos do princípio da função social. Neste último ponto, destaca-se a natureza jurídica, do princípio em comento, de norma de Direito Público que deve ser observada, sem dúvida alguma, nas relações privadas.

O fato de outrora o direito de propriedade ter sido considerado como um direito absoluto em si mesmo, esbarra, hodiernamente, em um ordenamento jurídico pátrio mais humano e atento as necessidades da coletividade, redescobrindo um novo olhar, isto é, a perspectiva urbanística a ser ponderada em sua aplicação no caso concreto.

REFERÊNCIAS

ALBUQUERQUE, Marina Câmara. A usucapião coletiva no novo Código Civil. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 66, 1 jun. 2003. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/4157>. Acesso em: 15 ago. 2011.

ANGHER, Anne Joyce (Org.). VADE MECUM Acadêmico de Direito. 8ª ed. São Paulo: Rideel, 2010.

FERNANDES, Edésio; ALFONSIN, Betânia (Coords.). Revisitando o instituto da desapropriação. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2009.

FERREIRA, Eduardo Oliveira. Lei Agrária na Roma Antiga. São Paulo: Visão Jurídica, n. 19, p. 64-68. 2009.

GAGLIANO, Pablo Stolze; FILHO, Rodolfo Pamplona. Novo Curso de Direito Civil - Parte Geral. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008. v. 1.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil – Direito das Coisas. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010. v. 5.

GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao Estudo do Direito. 39ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2007.

IHERING, Rudolf Von. A luta pelo direito; tradução Mário de Méroe. São Paulo: Centauro, 2003.

JUSBRASIL: Jurisprudências. Disponível em: <http://www.jurisway.com.br>. Acesso em: 11/12/2010

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 24ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2009.

REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva, 2007.

REALE, Miguel. Exposição de Motivos ao Anteprojeto do Código Civil. In: NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil comentado. 3ª ed. São Paulo: RT, 2005.

ROUSSEAU. O Contrato Social. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2007.

TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando. Direito Civil – Direito das Coisas. São Paulo: Método, 2008. v. 4.




[1] Vale ressaltar, ainda, que segundo o Enunciado nº 307, aprovado na IV Jornada de Direito Civil: “Na desapropriação judicial (art. 1.228, § 4º), poderá o juiz determinar a intervenção dos órgãos públicos competentes para o licenciamento ambiental e urbanístico”.
[2] STF Súmula nº 237: O usucapião pode ser arguido em defesa.