A USUCAPIÃO COLETIVA SOB A PERSPECTIVA DA VALORAÇÃO SOCIAL
DA POSSE-TRABALHO
Uili José Santana
dos Santos
RESUMO
A questão tratada no presente texto envolve um
inegável senso crítico do Direito de Propriedade a partir dos novos
instrumentos jurídicos – usucapião
coletiva e desapropriação judicial
privada – presentes, respectivamente, no Estatuto da Cidade (Lei nº
10.257/01) e no novo Diploma Civil. Tais instrumentos são aqui discutidos sob a
ótica do instituto denominado por Miguel Reale de posse-trabalho.
PALAVRAS-CHAVE: Usucapião coletiva. Desapropriação judicial
privada. Posse-Trabalho.
INTRODUÇÃO
A
questão em torno da aplicabilidade da função social da propriedade vem sendo
discutida com maior veemência a partir da promulgação da Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988, visto que a ordem econômica, fundada na
valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a
todos existência digna, conforme os ditames da justiça social e amparado pelo princípio da função social da
propriedade (Art. 170, III CF).
Dessarte,
no entendimento de Sonia Rabello (in:
FERNANDES & AFONSIN, 2009, p. 215) o princípio da justiça social se
desdobra em dois outros princípios, quais sejam “no princípio da justa distribuição dos benefícios e dos ônus
sociais, e no princípio que veda o
enriquecimento sem causa”, e assim, infere a autora que estes últimos estão
materializados, hoje, no Estatuto da Cidade (Lei 10.257, de 10 de julho de 2001)
e no novo Código Civil. Outrossim, o jurista Miguel Reale nos lega um novo
instituto denominado, por ele mesmo, de Posse-Trabalho
(expressão utilizada, pela primeira vez, em 1943 em parecer sobre
decreto-lei do Estado de São Paulo), repercutindo seus efeitos, sobretudo, no
direito fundamental à propriedade e, igualmente, no direito social à moradia.
1. ETIOLOGIA DO DIREITO DE PROPRIEDADE
O instituto do direito de
propriedade é tão antigo quanto à existência do homem. Pois, se considerarmos
que a sociedade passou por estágios diferenciados de desenvolvimento humano,
repercutindo nas esferas sociológicas, antropológicas, e também, jurídicas, da
mesma forma, se constata que os institutos “que tem natureza social que
antecede a jurídica” (GUSMÃO, 2007, p. 7) evoluíram, mormente, em relação aos
direitos naturais inerentes a todos os seres humanos.
Desta forma, a sociedade
transmudou-se de um estágio natural – em que predominava a autotutela (a lei dos mais fortes) – para um uma sociedade
política, onde a convivência humana necessitou de uma espécie de pacto ou
contrato social (ROUSSEAU, 2007), no qual os seres humanos delegaram a sua vontade a um ente abstrato representando
a vontade geral: o Estado.
Apesar
disso, a história demonstra que no início de Roma não havia sistematização do
direito à propriedade, sendo este considerado absoluto, inexistindo deveras
restrições ao poder de gozar, reaver, usar e dispor da coisa.
Na
Idade Média, os senhores feudais que eram os proprietários das terras, muito
embora cedessem aos seus vassalos a posse destas, bem como, proteção e abrigo,
exigiam como contraprestação o cultivo e a mantença dos suseranos.
Com
a Revolução Francesa, na conjuntura da propagação das ideias iluministas, o
direito a propriedade se consolidou como consectário do direito a liberdade em
seu sentido pleno e formal, se consagrando como direito de primeira dimensão.
Todavia, a realidade tornou imperioso se buscar uma igualdade material e não
apenas formal, uma vez que esta existia apenas no plano teórico e para as
classes dominantes.
Posto isso, é que surge a
necessidade de se fornecer função social à propriedade, isto é, dar finalidade
a mesma em prol dos interesses sociais, ao bem comum.
2. CONCEITO DE POSSE-TRABALHO
O
novel diploma civilista brasileiro modernizou os institutos do direito material, embora muitos conceitos já constassem
no Direito Comparado, a exemplo da boa-fé objetiva bastante discutida pelos
juristas europeus.
Desta
feita, na doutrina pátria pudemos contar com novidades no Estatuto da Cidade
(importante inovação legislativa trazida pela Lei 10.257, de 10 de julho de
2001) e, também, no atual Código Civil. No primeiro instrumento jurídico, o
legislador infraconstitucional dispôs em seu artigo 2º que “A política urbana
tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade
e da propriedade urbana” e mais adiante em seu artigo 10 apresenta instituto
jurídico novo: A usucapião especial
urbana coletiva, ipsis litteris,
As áreas urbanas com
mais de duzentos e cinquenta metros quadrados, ocupadas por população de baixa
renda para sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, onde
não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, são
susceptíveis de serem usucapidas
coletivamente, desde que os possuidores não sejam proprietários de outro
imóvel urbano ou rural.
(sublinhou-se)
Dentro da mesma ideia, o Código Civil
brasileiro apresenta pela primeira vez a função social do contrato prevista
no artigo 421 “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da
função social do contrato”, e também, o instituto da desapropriação judicial privada
vislumbrado nos §§ 4º e 5º do art. 1.228[1], ipsis
litteris
§ 4o O
proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado
consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco
anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em
conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse
social e econômico relevante.
§ 5o No
caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida ao
proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do
imóvel em nome dos possuidores.
Desta forma, observa-se que todos os institutos
supracitados estão balizados na função social da posse, na boa fé e no novo
conceito de posse caracterizado como posse-trabalho. Frise-se, este último
atribuído a sua autoria ao jusfilósofo Miguel Reale (apud NERY JR e NERY, 2005), sendo consequência de sua marcante
influência na elaboração do anteprojeto do atual diploma privado.
Nas palavras de Reale (idem) esta posse é caracterizada pela
realização no imóvel de obras e serviços de interesse social e econômico
relevantes, v.g. a destinação para a
moradia. Em vista disso, a posse-trabalho constitui um conceito aberto e
indeterminado a ser preenchido pelo julgador em cada caso.
À
vista do exposto, é notória a utilização da posse-trabalho como fundamento, não só, para a
desapropriação judicial privada prevista nos parágrafos acima, como também,
para usucapião especial urbana coletiva prevista no Estatuto da Cidade.
À
propósito, necessário se faz uma comparação aos dois institutos apontando-se as
diferenças:
a) Enquanto
na usucapião coletiva os ocupantes devem ser de baixa renda, na desapropriação
judicial privada não há essa necessidade;
b)
Na
usucapião coletiva a área deve ter, no mínimo, 250 m2, não se
exigindo o mesmo da desapropriação judicial privada;
c) Enquanto a usucapião coletiva apenas se aplica
aos imóveis urbanos, na desapropriação judicial privada a sua aplicação se dá
tanto aos imóveis urbanos quanto aos rurais;
d) Na
desapropriação judicial privada há direito a uma indenização, o que não se
exige para configuração da usucapião coletiva.
Em verdade, a aquisição da
propriedade através da posse-trabalho pode ter aplicabilidade em
diversas situações, desde a usucapião especial ou ordinária, ou mesmo, nesta
nova espécie de aquisição a partir da desapropriação judicial privada,
prestigiando, em qualquer caso, a funcionalização da propriedade, na qual se
vislumbra uma finalidade em prol da coletividade, lastreada no Princípio da
Socialidade um dos baluartes norteadores do novo Código Civil em contraposição
à ideologia individualista e patrimonialista do sistema de 1916.
2.1
O CASO DA FAVELA PULLMAN
Em
âmbito forense existe um interessantíssimo julgado, que repercutiu no colendo
Superior Tribunal de Justiça, onde se evidencia a aplicabilidade do instituto Posse-Trabalho e a possibilidade de
aplicação da Usucapião Especial Urbana
Coletiva no caso concreto. O fato ocorreu na zona sul da cidade de São
Paulo, esta região é conhecida popularmente como favela Pullman, veja-se
excerto do julgado inovador:
CIVIL E PROCESSUAL. AÇÃO
REIVINDICATÓRIA. TERRENOS DE LOTEAMENTO
SITUADOS EM ÁREA FAVELIZADA. PERECIMENTO DO DIREITO DE PROPRIEDADE. ABANDONO.
CC, ARTS. 524, 589, 77 E 78. MATÉRIA DE FATO. REEXAME. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA
N. 7-STJ.
I. O
direito de propriedade assegurado no art. 524 do Código Civil anterior não é
absoluto, ocorrendo a sua perda em face do abandono de terrenos de loteamento
que não chegou a ser concretamente implantado, e que foi paulatinamente
favelizado ao longo do tempo, com a desfiguração das frações e arruamento
originariamente previstos, consolidada, no local, uma nova realidade social e
urbanística, consubstanciando a hipótese prevista nos arts. 589 c/ 77 e 78, da
mesma lei substantiva.
II. “A
pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial” - Súmula n.
7-STJ.
III.
Recurso especial não conhecido.
(STJ – Recurso Especial 75.659 – SP
(1995⁄0049519-8) – 4.ª Turma – Relator Ministro Aldir Passarinho Junior –
Recorrente – Aldo Bartholomeu e outros, Recorrido: Odair Pires de Paula e
outros – Data: 21.06.2005).
Diante
do exposto, no acórdão acima sobressalta-se a valorização da posse-trabalho
para preenchimento da função social da propriedade e a consequente aquisição da
mesma pelos moradores da sobredita favela. Nesse caso, poderia ter sido
aplicado, sem embargos, a usucapião coletiva, porquanto se percebe presente um
dos requisitos para configuração deste direito, isto é, o estado de composse ou
litisconsórcio dos possuidores que ao longo do tempo ocuparam os terrenos
abandonados com a desfiguração das frações originariamente prevista para cada
possuidor. Apesar de citados dispositivos do Código Civil de 1916, o julgado
acima demonstra factualmente a situação na qual o loteamento abandonado se
encontra, ou seja, seus moradores foram ao longo dos anos empregando esforços
para construir não somente ruas, vielas, mas principalmente, as suas moradias. Com
certeza, encontra razão Rudolf Ihering (2003, p.30) em sua obra A luta pelo direito, ao expor que “[...]
a energia do amor com que um povo está preso ao seu direito e o defende, está
na medida do trabalho e dos esforços.”. Há, nesse ponto, perfeito encaixe com a
teoria objetivista, também de sua autoria, à medida que para configuração da
posse basta que a pessoa disponha fisicamente a coisa.
É
importante, ainda, salientar que o Estatuto da Cidade prevê a usucapião
coletiva (art. 2º, inciso
XIV) como sendo mais um
instrumento de aquisição da propriedade através da posse-trabalho por famílias
de baixa renda, visto que, na expressão de Carlos Roberto Gonçalves (2010, p.
268),
A
inovação visa à regularização de áreas de favelas ou de aglomerados
residenciais sem condições de legalização do domínio. Dentre as diretrizes da
política urbana que têm por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das
funções sociais da propriedade...
Portanto,
apesar do referido estatuto ser anterior ao novo Código não há de considerá-lo
revogado uma vez que se cuida de norma especial, além do mais está em perfeita
harmonia com artigo 6º da Constituição Federal que elenca o direito a propriedade como parte
integrante do Título II que trata dos Direitos e Garantias fundamentais,
consequentemente, é uma norma de ordem pública. Destarte, os professores Flávio
Tartuce e José Fernando Simão (2008, p. 146), a fortiori, mencionam que
… a
saída seria entender que, principalmente nos casos de famílias de baixa renda –
que envolvem a questão da função social da propriedade como valor constitucional
– a matéria é de ordem pública, podendo o juiz conhecê-la de ofício, o que
representa exceção ao princípio da inércia, como reconhecem os próprios
processualistas […].
Deste
modo, a Súmula 237[2] do
egrégio Supremo Tribunal Federal prevê que o usucapião pode ser alegado como
matéria de defesa. Logo, data venia, fazendo
aplicação analógica a posse-trabalho nos novos institutos
da desapropriação judicial privada e
da usucapião coletiva, também,
poderá ser alegada como matéria de defesa nas ações reivindicatórias, dentre
outras.
Sendo
assim, verifica-se, como dito linhas atrás, que diversas são as situações
ensejadoras da aplicação da posse-trabalho para a concepção do direito de
propriedade advindo de uma posse que atenda aos fins sociais exigidos no artigo
5º, inciso XXIII da Lei Maior. Além disso, harmonizando-se com o Princípio da
Operabilidade que implica na concessão de maiores poderes hermenêuticos aos
magistrados, prestigiando a normatização por cláusulas gerais a serem
colmatadas no caso concreto, segundo prelecionam os autores e magistrados Pablo
Stolze e Rodolfo Pamplona (2008, p.52).
Outra
vez, referenciando Ihering em sua obra A
luta pelo direito (2003, p. 46), vê-se que:
… O
grau de energia com que o sentimento jurídico reage contra uma lesão do direito
é a meus olhos uma medida certa da forma com que um indivíduo, uma classe ou um
povo compreende, por si e pelo fim especial da sua vida, a importância do
direito, tanto do direito em geral, como de uma instituição isolada do
direito. (sublinhou-se)
Por
conseguinte, a lição deixada pelo autor supracitado finda por consagrar o
brocardo jurídico que diz: “O direito não socorre aos que dormem”. Igualmente,
necessário se faz dar destinação/finalidade a posse e, por corolário, a
propriedade, beneficiando não apenas o possuidor/proprietário, mas toda a
coletividade.
3.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante
do que foi exposto, à luz da lei, da doutrina e da jurisprudência, pretendeu-se
elencar e provocar reflexões acerca dos institutos: desapropriação judicial privada, usucapião coletiva e posse-trabalho
todos imbuídos do princípio da função social. Neste último ponto, destaca-se a natureza
jurídica, do princípio em comento, de norma de Direito Público que deve ser
observada, sem dúvida alguma, nas relações privadas.
O
fato de outrora o direito de propriedade ter sido considerado como um direito
absoluto em si mesmo, esbarra, hodiernamente, em um ordenamento jurídico pátrio
mais humano e atento as necessidades da coletividade, redescobrindo um novo
olhar, isto é, a perspectiva urbanística a ser ponderada em sua aplicação no
caso concreto.
REFERÊNCIAS
ALBUQUERQUE, Marina Câmara. A usucapião coletiva no novo Código Civil.
Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 66, 1 jun. 2003. Disponível em:
<http://jus.uol.com.br/revista/texto/4157>. Acesso em: 15 ago. 2011.
ANGHER, Anne Joyce (Org.). VADE
MECUM Acadêmico de Direito. 8ª ed. São Paulo: Rideel, 2010.
FERNANDES, Edésio; ALFONSIN, Betânia
(Coords.). Revisitando o instituto da
desapropriação. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2009.
FERREIRA, Eduardo Oliveira. Lei Agrária na Roma Antiga. São Paulo:
Visão Jurídica, n. 19, p. 64-68. 2009.
GAGLIANO, Pablo Stolze; FILHO, Rodolfo
Pamplona. Novo Curso de Direito Civil - Parte Geral. 10ª ed. São Paulo:
Saraiva, 2008. v. 1.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil – Direito das Coisas. 6ª
ed. São Paulo: Saraiva, 2010. v. 5.
GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução
ao Estudo do Direito. 39ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2007.
IHERING,
Rudolf Von. A luta pelo direito;
tradução Mário de Méroe. São Paulo: Centauro, 2003.
JUSBRASIL: Jurisprudências. Disponível
em: <http://www.jurisway.com.br>. Acesso em: 11/12/2010
MORAES, Alexandre de. Direito
Constitucional. 24ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2009.
REALE, Miguel. Lições Preliminares
de Direito. São Paulo: Saraiva, 2007.
REALE,
Miguel. Exposição de Motivos ao
Anteprojeto do Código Civil. In:
NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil comentado. 3ª ed. São Paulo: RT, 2005.
ROUSSEAU.
O Contrato Social. Porto Alegre:
L&PM Pocket, 2007.
TARTUCE,
Flávio; SIMÃO, José Fernando. Direito
Civil – Direito das Coisas. São Paulo: Método, 2008. v. 4.
[1] Vale ressaltar, ainda, que segundo o
Enunciado nº 307, aprovado na IV Jornada de Direito Civil: “Na desapropriação
judicial (art. 1.228, § 4º), poderá o juiz determinar a intervenção dos órgãos
públicos competentes para o licenciamento ambiental e urbanístico”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário